O mocho quase coruja
Exposição Vicente Saraiva
Atelier Vitor Pomar

O Caso ‘Vicente Saraiva’
Amazing, amazing,
The heart placed fresh in the palm, nothing else.
From “The Final Words of Senge Wangchuk” (in “Crystal Cave, A Compendium of Teachings by Masters of the Practice Lineage”, Rangung Yeshe Publications, Katmandu-Hong Kong, 1990)

1.
SÃO CÁBULAS, SENHOR!

Sabemos que toda actividade humana é cultura.
Já a motivação que subjaze a toda esta produção, permanece maioritariamente ignorada.
A prática criativa também se descobre omnipresente.
Cada passo que damos (ou não damos), reflete todo um processo ou teia de relações por deslindar.
Sabedoria e des-conhecimento ou ignorância estão constantemente em jogo, sendo aquela uma prática de intimidade consigo próprio que abre caminho à intimidade com todas as coisas.
A ignorância coabita tanto com o desejo como com a agressividade, mesmo quando acena com valores e apegos vários.
Só um desapego libertador nos pode encaminhar para uma lucidez que é entrega (de si).
O processo criativo é iminente em cada instante que tanto percorremos quanto nos atravessa.
Lição esta que podemos inferir da dádiva que é o encontro com o caso ‘Vicente Saraiva’, manifesto na sua incessante actividade.
Deste encontro fulminante sairemos tão derrotados quanto possuídos por uma força incondicional que não mais
poderemos ignorar.

VP, Benfica 20 Novembro 2022

2.
EM QUE A VISÃO SE TORNA CONTEMPLAÇÃO

A prática criativa é essencialmente um exercício de generosidade.
Da Fonte ou Musa, a montante da criatividade,
escorre o milagre da Arte que é profundamente feminino,
só se equiparando às antigas religiões da Deusa.
Assim se explica ou entende que não haja discurso capaz de
esgotar as múltiplas facetas que parecem constituir o universo da arte.
Só o conceito de ‘Deus Criador do Universo’
vem trazer ou impor uma esmagadora passadeira vermelha
que o artista descobre desenrolada a seus pés.

A escuta,
receptividade feminina por excelência,
generosidade incondicional
(não por opção mas por essência),
torna-se afirmação e vontade.

Tal como a ‘hipertrofia do sistema nervoso central’, característica humana,
ferramenta tão prodigiosa quanto ignorada,
permite a construção de discursos categóricos embora sem fundamento.
O milagre da criatividade trama o próprio artista.
Só um reconhecimento constantemente actualizado da natureza da mente
pode precaver o artista dos escombros da glória.
Uma vez aceite o princípio da ‘pintura como coisa mental’,
impõe-se a questão explícita de saber em que consiste esta consciência,
capaz de se interrogar e reconhecer tanto a si própria como
aos fenómenos e ao universo de que, de facto não se distingue.

Assim podemos proteger-nos do endeusamento do artista criador
e descobrir uma perspectiva só comparável à visão do astronauta
que, do espaço, contempla o planeta azul.
Quando a separação entre eu e o outro se desvanece, a visão torna-se contemplação,
a liberdade torna-se (amor) incondicional, tal como a dignidade se descobre incorruptível.
Sabemos que toda construção é limitada e ilusória,
donde que devemos procurar algo que escape a essa lei.

VP, Assentiz, 3/09/2018

3.
O OLHAR PACIFICADO

Abandonar:
o pensamento discursivo,
os três venenos,
o espírito convencional,
a ilusão mental,
a vacuidade,
a virtude
e
o erro.

Quando o espírito olha o espírito,
o pensamento discursivo cessa
e a iluminação é alcançada.

O olhar pacificado.

Todos os fenómenos sem excepção.

Nenhuma técnica!
Uma técnica é apenas memória.
A vontade bloqueia a criatividade.
Quando deixamos de pensar,
recebemos algo que nos ultrapassa.
O criador é aquele que se cala.
A obra é a sua própria razão de ser.
Todos os projectos são medíocres.
Cada instante é criativo:
há células que nascem, outras que morrem,
tudo é criatividade.
A transposição da metafísica deve ser
de um absoluto rigor quanto ao fundo
e duma total liberdade quanto à forma.
Um único pensamento e o círculo quebra-se.
(…)

Vítor Pomar, Assentiz, 23 de Junho de 2012

Vicente Saraiva – O Mocho Quase Coruja
Novembro de 2022
Miguel Meruje

O mocho e a coruja são aves de rapina, pertencentes à mesma ordem e família, com a particularidade de serem criaturas da noite. Apesar das formas dóceis com que amiúde são caricaturadas, são ambas aves portentosas, predadores destemidos, ainda que difiram no porte.
Nesta comédia Dantesca que é o mundo, o artista Vicente Saraiva veste uma máscara, um ornamento que ele próprio decorou, para surpreender a audiência com as suas obsessões, traduzindo a sua linguagem com a própria voz, e desta maneira comunicar o seu conteúdo íntimo e pessoal. É a dissimulação do mocho quase coruja, o observador que se manifesta e que, dada a raridade deste acto, põe as outras criaturas a escutar.

Simbolicamente, o mocho, pela sabedoria que emana, é um animal sedutor, que encanta com diferentes melodias quem o ouve na floresta. Criaturas isoladas, mas que não renegam o meio a que pertencem, os mochos, seres da noite e de grandes olhos arregalados, dominam o tempo propício à reflexão e ao isolamento. Atentos aos sinais, acordados quando os outros dormem, subsistem encobertos pela escuridão, movimentando-se em silêncio.
Por sua vez, as corujas têm graciosidade no voo ritmado que encetam. De penas branqueadas, e detentora de uma alma feminina, em virtude dessa aparente pureza, a cultura clássica usava a coruja como símbolo da premonição e de contacto com um submundo de incertezas e de segredos.

Estes mensageiros que mudam de forma, captam as forças transformadoras com que Vicente Saraiva produz freneticamente as criaturas a que dá corpo, também elas selvagens e que surgem domadas na superfície pictórica em que as apresenta. O papel não fica incólume, é uma arena remexida e que fica povoada de seres ora amigáveis, ora perturbados. A sensibilidade do artista leva a que fixe no papel o que é disforme, numa sequência estável e progressiva que vai elaborando variações sobre as figuras às quais quer sempre dar um rosto, de dentição definida, serras de linhas rectas entrecruzadas que são substitutas de um ranger de dentes — com uma tremenda força dá lugar a um grito de mutismo, e a uma frescura pueril, que resulta da acumulação de energias, são ambas companheiras de longos dias.

Se aceitarmos este campo como um território imaginado, não estaremos todos nós a ser retratados nos demónios cujos traços reconhecemos? Não estamos habituados a vermo-nos desta forma, que não é bela, mas não será esta mais real do que a representação tecnicamente hiper-realista? Dado que o olhar não pode ver tudo, porventura a nossa equivalência é assim revelada por Vicente Saraiva, mestre das marionetas que se apropria do submundo onde se movimenta, e tece uma ponte para que nós lá cheguemos. Quando somos recebidos, nesse salão de espelhos, começamos a discernir as semelhanças; numa linguagem que reconhecemos, mas que não dominamos, entramos em diálogo. Podemos renegar a nossa essência e tentar negá-lo, mas estamos ali presentes, com o artista e com as iluminações que capta: ele não está a pintar corpos, mas sim a pintar almas.

Neste abandono radical da superfície branca, a que se superimpõe sempre um monstro que quase suja, Vicente Saraiva recorre às inspirações de diferentes latitudes que informam as figuras às quais dá um rosto, numa rejeição da linha uniforme e num encantamento pelo método da construção das formas em massa. Porventura, elas tomam-lhe a mão e guiam-lhe o pensamento, clamando por existirem, a que o artista, ora mago criador, ora servo impotente destes demónios que o consomem, acede.
Trabalho de escavação do indescritível, dos mistérios, do oculto, das criaturas grotescas e disformes, que revelam um fascínio inocente pelo primordial, os demónios que inspiram Vicente Saraiva levam-no a soprar vida a criaturas que convivem com os seus próprios fantasmas. São alegorias para conteúdos não-concretos, que o artista desenha pelo prazer do acto sucedâneo de desenhar e desenhar mais e fazê-lo incessantemente.
Para partilhar as suas criações, para mostrar de uma maneira quase tímida um tecido de cores garridas que se complementam, o artista faz uma eleição certeira: o mocho atento na escuridão e a herança do piar da coruja, que nos trazem a visão de algo original a que não temos acesso senão através desta translação. Esta metáfora, generosa vertente daquilo que nos toca vindo do mundo irreal e de um tempo suspenso, comunica conosco por traços que se assemelham a algo do quotidiano, um conceito estrangeiro às formas criadas por Vicente Saraiva, que ganham uma voz própria e se comportam como uma vela de cera: existe para depois se extinguir e a forma submergir.

Miguel Meruje

Vicente – sensações vibratórias…
Junho de 2022
Pedro Arrifano

A arte é possivelmente uma das experiências mais intensas da vida, no sentido que força o pensamento a ir mais além. Por vezes a ir até onde não pode, mas para certos artistas ela também tem o seu lado compulsivo.
Vicente é pura força, energia vibratória. Para ele a arte é como se fosse a única saída que encontrasse para se expressar. A arte, para ele, é composição de vibrações que “tocam” directamente o cérebro. A importância desta força plástica sobre uma tela é que força o observador a fragmentar toda a linha de senso-comum da sua vida quotidiana. A barra de óleo que utiliza para se exprimir é o seu habitat, de onde retira a energia para a sua existência. É um artista do sistema nervoso, pois tudo aquilo que produz vibrações atinge o sistema nervoso e faz aumentar a capacidade intelectual e apaixonar-se cada vez mais, pelos caminhos brilhantes de luz: Dragão de luz. Neste soltar de pequenas alucinações (cada um terá a sua) o seu mundo aparece. Na verdade vive-se numa suposta ilusão comunicativa nos processos da existência e só podemos entrar em comunicação pela arte: aquele exacto momento em que se soltam as alucinações/vibrações e se revela algo a Outro. Contrário ao solipsismo cartesiano o artista quando expressa o seu mundo, está a revelar a sua subjectividade. É precisamente neste processo que Vicente se “mostra” e comunica com aquilo está Fora dele, revelando-se. Ninguém conhece essa subjectividade, vivemos mergulhados na mais completa confusão, no mais completo atordoamento – os homens, ou os seres vivos são quase totalmente atordoados. O esforço da arte é vencer o atordoamento do estar preso a um “dentro”. Cada tela para Vicente é uma força selvagem, violenta, conquistadora – cujo único objectivo seria a criação, a invenção e a produção. É como se fosse uma autopoesis: um poder auto-criativo que passa no seu corpo. São estas forças expressivas que produzem o seu território artístico bem como a génese do seu organismo e uma espécie de inquietude. Todo o ser vivo é inquieto porque a cada instante da sua vida determinadas forças querem revelar-se, já que caso assim não fosse ficaríamos congelados numa só percepção. É a inquietude que Vicente plasma nas suas obras que o impede de mergulhar no fundo sombrio, tornando-se num artista luminoso…dragão que expele sensações vibratórias.

Pedro Arrifano