Ciclo de Exposições na Ante-Sala e Salão da BASE
Exposição A Pequena Cadeia do Ser de Tiago Rocha Costa

Texto de Miguel Meruje

Na sequência do corpus artístico que desenvolve, Tiago Rocha Costa apresenta em ‘A Pequena Cadeia do Ser’ uma camada subcutânea da sua prática multidisciplinar, acrescentando elementos sob o contexto exploratório que A Base incentiva enquanto escola de arte. As preocupações ambientais, o elogio da natureza e as pontes entre o sistema ecológico e a arte são terreno para as divagações que o artista faz, destacando-se a preocupação com a pertença a uma linguagem contemporânea, mas assumidamente regressiva, de preocupação com a utilidade de diferentes materiais (por vezes industriais) e do seu impacto no grande plano, sendo essas escolhas conscientemente parte do processo de exposição, de provocar questões ao próprio artista acerca da necessidade de objectos poluentes e da propensão que a arte actual tem para reciclar temas mas não materiais.

Existe em ‘A Pequena Cadeia do Ser’ uma preocupação com o subterrâneo, de explorar o obscuro, o não-óbvio, e trazer-lhe luz, revelando-o. Temos o sistema do mundo natural contagiado pela arte, convivente com as suas ruínas e a lenta assimilação das construções humanas pelo avanço paciente da natureza no processo de reconquista. Esta reminiscência dos primórdios é explorada num rebuscado jogo que começa nas nomenclaturas, mas de grande sensibilidade poética na sua dimensão mais encantatória, da aura que não captamos, do sentido que somos intuídos a seguir para compreendermos o declínio das formas de vida, e assim almejarmos estabelecer alguma conexão com o nosso próprio passado.

O espaço envolvente criado por Tiago Rocha Costa é de uma hora tardia — depois de extinta a vida, sobram as formas estáticas da arte, um memorial onde a exegese do seu sentido é postulada pela condição possível em que as suas relíquias chegaram até à galeria. Celebra-se a existência das formas naturais já aperfeiçoadas, mas que, com uma nova materialidade, revelam a pureza dos ciclos de vida, de criação e de desaparecimento, difíceis de auscultar nas plantas e a que a maioria dos animais é imune, todavia, no que toca à nossa espécie, comove-nos.

Vista da Exposição A Pequena Cadeia do Ser

“Perdoarei algum dia à terra por me ter incluído entre os seus apenas a título de intruso?”
Emil Cioran

Logo à entrada, foi criado um momento que o artista cataloga de mais experimental: a porta divisória como introdução que, pelas deformações e destruição, é sinal de um portal arqueológico, junto de ‘micro-habitats’ dentro dos frascos abertos, prontos a receberem insectos do exterior, aliados à areia, uma presença regular na prática do artista. A própria existência de uma porta acarreta um enorme poder, de excluir e de convidar, de revelar e esconder, sendo, por conseguinte, logo um espaço de possibilidades (onde se inclui a negação) e de transição. Também as poeiras são símbolos da impermanência, que dispostas conscientemente, são uma das sensibilidades que Tiago Rocha Costa vem a explorar no plano mais alargado da sua carreira artística. A outra medida, que persiste no confronto à redutibilidade da areia, são as formas emassadas, como é o caso das obras com que ocupa o interior do Salão d’A Base.

A centralidade de ‘Meganeura’, o logotipo suspenso — parte de um período de megafauna e que, pela sua substancial magnitude, ainda hoje se afigura como fascinante — que emerge como inevitável no Salão d’A Base é uma fantasia cuja etimologia da palavra logos não esclarece mas aprofunda. A discussão já centenária sobre a aplicação desta palavra grega na nossa língua projecta-a algures para a própria ideia de palavra, mas também como ideia. Tiago Rocha Costa, nesta recriação do mundo natural, auto-suficiente, mas perturbado pela presença humana, exibe ‘Meganeura’ como ordenamento e como mudança, algo que repõe a verdade no mundo. O insecto surge como forma de trazer as coisas à existência, as ideias à partilha, visto que não é apenas corpóreo — dá uma forma à ideia, na grandeza que o sufixo indicia, como revela a ligação a esse insecto desaparecido, cuja textura dos veios visíveis das asas completava aquele que será um dos mais elementares e primordiais insectos a voar no nosso planeta, bem como o de maior dimensão, pelo que a evolução do seu mecanismo aerodinâmico era fundamental para a agilidade no vôo.

A representação da ‘Meganeura’, vestígio pré-histórico deslocado do ecossistema que ajudou a equilibrar, com o seu majestoso corpo alongado e a envergadura das asas cujo bater é captado a um momento, o da petrificação, bem como essa dicotomia omniabrangente, do animal extinto, mas cuja forma é marcada no glorioso vôo, faz o espectador pensar na longitude das espécies, na impermanência das coisas, reportando-se neste caso à beleza esvoaçante e fugaz, inclusive pelas suas curtas vidas, as dos insectos.

“A sagacidade de quem sabe apagar os seus próprios vestígios, de quem sabe agitar posteriormente o caos e, no dia seguinte, se pode refugiar numa ordem feita de poucos elementos.”
Roberto Calasso

Ao pegar numa criatura que só conhecemos fossilizada e através dos seus posteriores desenhos científicos, Tiago Rocha Costa abre outro capítulo, sobre o qual já no passado se debruçou, pois ao resgatar o fóssil, entramos no território da ruína. Por um lado, existem a textura e a escala imponente, por outro, o movimento gracioso, interrompido pela evolução. Neste cruzamento de texturas da geologia e evocações da biologia está a tecitura desse intrincado sistema de ‘A Pequena Cadeia do Ser’, e esse nobre gesto artístico de celebrar a evolução ao elogiar as formas desaparecidas. E é defronte da representação deste animal mítico que nos questionamos sobre a nossa posição na vasta continuidade do tempo, onde, na ruína e decadência de um animal extinto, podemos alargar o nosso horizonte sobre a existência e projectar um futuro alicerçado no que ontem existiu, encoberto por um emaranhado contextual que visamos desfiar.

A Meganeura foi uma espécie de insectos carnívoros e capaz de vôo delicado em redor da flora de águas calmas, que ainda hoje servem de habitat aos seus descendentes mais próximos, as libelinhas e as libélulas. Contudo, ao invés da fragilidade (e cada vez mais irregular contacto que temos com estas espécies sucessoras), a ‘Meganeura’ de Tiago Rocha Costa surge à escala humana e é possível fazer-se uma justaposição do próprio espectador com as asas do insecto. Uma gigantesca libélula que se maximizou e partilhou a Terra com outras criaturas igualmente agigantadas, reergue-se como uma massa sólida, na escala imponente, contrapondo-se à sua versão actual, miniaturizada, com que temos contacto e que também caminha para a extinção.

 

A Grande Cadeia do Ser (‘Scala Naturae’) é reconhecida na actualidade como sendo um conceito ultrapassado, cuja estratificação hierárquica ordena desde a matéria inanimada até aos seres em relação com o topo da escala, que seria o divino. Claro que esta perpetuação da validade da existência de seres com determinadas características serve apenas uma visão unificada que visa a desagregação social e a pré-determinação de uma vida pelo seu valor (ou suposto demérito) genético. No caso da natureza, a ‘Scala Naturae’ também podia ser injusta quanto à perfeição natural que pretendia ordenar. Mas nestas preocupações com a escala, Tiago Rocha Costa relativiza a importância da hierarquia, até porque a referência que havia desse superlativo mega só subsiste em representação artística. É ainda o cuidado que o artista emprega nas diferentes fases, desde a projecção em desenhos digitais até à construção em estúdio que ancoram ‘Meganeura’ num local de múltiplos significados e de extrema relevância, porquanto as preocupações com a passagem do tempo, com os efeitos da calcificação, da submersão do que perdeu destaque para, eventualmente, no futuro ser reerguido, são o propósito a que as obras de arte de Tiago Rocha Costa dão destaque.

A complexidade do sistema intraplanetário e a interligação entre as espécies é hoje compreendida de maneira diferente, sendo certo que o fundamental é haver condições para se perpetuar uma ordem em que todas as coisas cumprem o seu papel, incluindo a espécie humana, tão habituada a abusar das suas necessidades reais e a assim perturbar o equilíbrio entre a fauna e flora terrestre.

Também não só de uma escultura se compõe ‘A Pequena Cadeia do Ser’, pois o trabalho partilha a sala com duas esculturas de menores dimensões, mas que são derivações de ‘Meganeura’, e cujo material dá nova vida a excedentes do processo de criar essa obra de arte, neste fluxo circulatório. Se enquanto escultura a prática de Tiago Rocha Costa não está dependente do martelo e do cinzel, as formas abstractas dos insectos são reutilizadas e o acabamento repete-se. A textura desgastada é um elemento da transiência, em que a natureza reclama aquilo em que o ser humano tocou, soprando vida sob formas extintas mas que assim se perpetuam como ruína. A própria Meganeura e as libelinhas são símbolos do inevitável declínio de todas as formas e da beleza esvoaçante e impermanente que nos rodeia. Portanto, a experiência destas obras de arte também lança avisos aos espectadores, pois sendo nós a espécie dominante na Terra, perante a ruína do insecto extinto, desaparecido apesar do poder e tamanho, somos relembrados dos ciclos da vida e da experiência humana, bem como da importância do momento presente perante o carácter efémero da nossa existência e das espécies de onde evoluímos. Serve a arte para interligar todo este conhecimento do passado e trazê-lo para a nossa realidade, necessariamente sensível às mudanças do meio ambiente, tal como os insectos.

A partir de A Pequena Cadeia do Ser, de Tiago Rocha Costa, poderemos cogitar sobre a criação do artista derivada da decadência do animal e tomarmos consciência da perpetuação da beleza natural, pensando a ruína não como estado final, mas como o ponto de partida de um processo artístico evolutivo.

Miguel Meruje – miguelmeruje.com