Ciclo de Exposições na Ante-Sala e Salão da BASE
A Medida Exata | Oficina de Escultura em Madeira

Texto de Miguel Meruje

A Oficina de Escultura em Madeira d’A Base apresenta uma exposição colectiva que visa reunir as diferentes expressões em que cada artista se destaca. Os trabalhos que foram desenvolvidos com a supervisão da professora Maria Ribeiro atestam a grande variedade e as possibilidades que um ambiente oficinal promove, onde a motivação individual orienta o trabalho intimista de cada um, executado num espaço de exploração conjunta e de partilha de técnicas e de vivências.

“Dizemos a Arte como dizemos a Natureza; são dois termos com significação quase ilimitada. Pronunciar uma ou outra destas palavras, Natureza, Arte, é fazer uma evocação, é extrair das profundezas o ideal, é correr um dos dois grandes cortinados da criação divina.”
Victor Hugo. Os Génios 

Farewells & Homecomings, 2023. Miguel Meruje. Vigas de Madeira de Ferrovia e Vidro

Em ‘A Medida Exata’ lida-se com a transformação da madeira, desde a fase inicial de planeamento — antes da execução, até aos acabamentos com uma variedade de soluções apresentadas. Os vestígios da intervenção humana, isto é, da mão do artista, são geralmente varridos na escultura em madeira, pela ambição que este tem de devolver ao mundo um objecto que parece sempre ter-lhe pertencido, uma criação que precede a existência humana. Isto porque, depois de responder à vontade de criar, onde há a projeção de algo que ainda não existe e de cujas soluções o artista tem de ir à procura, esculpir é uma arte redutiva, onde para criar é preciso tirar. E a sensibilidade precisa dos dedos, em contraste com a rudeza dos gestos, é necessariamente de precisão, tal como o manuseio das ferramentas e instrumentos são parte de um ritual repetitivo de aperfeiçoamento a que os escultores em madeira se dedicam. Isto, numa tensão constante que opõe a modelação aditiva à subtracção, por reduzir a matéria-prima. Existe também um trabalho de depuração, de limpar a casca da árvore e expô-la com a qualidade estética inata, como nas formas bifurcadas de ‘Teoria de Ordem’ de Miguel Brehm, composta por duas obras de madeira de buganvília e ‘À Espera’, escultura de Amanda Ferreira que mistura o suporte em madeira de plátano, aqui representa um banco, com um tronco de buxo para trabalhar as reminescências a que a madeira alude. Esta vertente de questionar a memória também é explorada por Miguel Meruje em ‘Farewells & Homecomings’, igualmente em duas partes em que,  da recolha de vigas de madeira das linhas de comboio, limpando-as e criando um contraste com as janelas de vidro escurecido, leva a um falso reflexo, onde se vislumbra uma outra versão do mesmo objecto.

Carimbos, 2023. Melissa Truniger. Grês com oxídos e corantes

Neste jogo de desgastar e descobrir essências, algo permanece oculto, algo de presencial que torna imprescindível o contacto em primeira pessoa com a escultura, sobretudo porque as obras apresentadas não fazem parte de uma encenação figurativa. Ao invés, são algo de real, tendo o elemento de ligação aos troncos expostos, aos ramos que se expandiram até serem cortados, às peças que já tiveram outras funções. Portanto, há vários estímulos que despertam o espectador, num clamor pela intimidade próxima que o trabalho manual convoca.

Das esculturas em madeira na exposição ‘A Medida Exata’ constam obras de arte com intenções díspares — obras de arte contemporânea e esculturas neo-tradicionais, bem como a madeira enquanto material ausente, como Melissa executa em ‘Carimbo’ uma recriação da força da madeira, mas com a fragilidade do grés. Dos fraseados rugosos esculpidos por Maria José Barbosa em ‘Andante’, a criatura que surge de um tronco de palmeira, às que dão destaque à matéria prima como as possibilidades que João Silva expõe com ‘Trimúrti’ e ‘Totem’, ambas em carvalho, mas em que o primeiro é a separação da unidade e o seu fragmento, e a segunda remete para o carácter do ídolo em madeira que a tantas civilizações serviu.

Trimúrti, 2023. João Silva. Tronco de carvalho e cera de abelha.

Para algo tão assente na morosidade, na repetição de movimentos, no aperfeiçoamento infinito da superfície, não deixa de ser intrigante que a escultura em madeira dispense as palavras. Uma obra de arte é bela porque é. O veio pode ser dissimulado, pode ser destacado, mas esse caminho foi uma opção ou um estilo. Não há, por conseguinte, certo e errado, mas sim, toda uma história de uma arte a que se deve respeito. A isto não será alheio um enfoque reflexivo que permeia a prática dos artistas presentes com A Medida Exata. Talvez seja possível formular uma teoria entre a transformação de madeira e a transformação que o processo opera no próprio escultor.

O verdadeiro artífice vai sempre à procura de uma superação não só das capacidades do génio inventivo, mas também a melhoria constante da técnica e encontrar um espaço de execução em que a mente pode descansar enquanto as mãos trabalham. Este lado comunitário, de guilda e de oficina, sempre foi exaltado na relação entre quem aprende e quem ensina, num espírito de camaradagem ou de competição, que estimulou tantos dos grandes escultores a superarem-se. No caso da Oficina de Escultura em Madeira d’A Base, é a dimensão operativa da escultura em madeira que é promovida, lidando com a individualidade das obras, dos autores, a força maciça da madeira, a dureza das ferramentas, as irregularidades nos troncos, os detalhes intrincados, entre outras dimensões que compõem o material utilizado.

À espera, 2023. Amanda Ferreira. Madeira de plátano, tronco de buxo e óleo de camélia.

“Gostava de operar sozinha porque o trabalho sério necessita de uma solidão em que meios se concentram, como acontece ao homem quando quer triunfar na vida.”
Charles-Louis Philippe. Bubu de Montparnasse 

A escultura em madeira começa com o pecado original, necessariamente latente perante as preocupações ecológicas que a pressão que exercemos no planeta vai suscitando: o corte de uma árvore que, pelo menos em tempos, foi saudável. Pese embora, no contexto artístico, o escultor faça parte deste consumo dos recursos, tenta dar uma nova vida aos troncos caídos e explorar os usos possíveis. E, por que justificação seja, passa a acoplar-se à identidade de um escultor de madeira e sujeito à sua vontade. Certamente, em nome da arte, o acto estará justificado por o objecto final ajudar a trazer beleza ao mundo, numa superfície onde esta ainda não tinha sido revelada. A própria adjetivação de um objecto como sendo decorativo é oriunda da ‘glória’, com origem em ‘decus’, e desde as primeiras grandes concretizações milenares da escultura em madeira a trabalhos autorais já no período medieval, como ‘A Virgem e o Menino em Majestade’ de Nicholas de Verdun, têm um propósito de prestar honra e culto a divindades. Mas, como visam mostrar as obras presentes nesta primeira exibição dos trabalhos que têm sido criados na oficina, toda a teorização de nada serve se não se pegar nos instrumentos. Daí a importância dada à criação artística em madeira, que se sobrepõe à ênfase concedida a tantos artesãos capazes de produzir mobiliário rebuscado, e de restaurar esculturas de outras épocas, ou à que outras áreas da marcenaria recebem fora do contexto artístico. 

En apesanteur, 2023. Émeline M. Madeira de mogno, pinho e cera de abelha.

Uma dessas disciplinas são os encaixes Japoneses em madeira, representados na exposição pela escultura ‘Sem Título’ de Carmen Silva em madeira de oliveira e pau roxo, bem como nas esculturas ‘En Apesanteur’ e ‘Sans Trucage’ por Émeline M, sendo a primeira em mogno e pinho e a segunda escultura utilizando madeira de plátano, oliveira, macieira e também pau roxo nas cunhas. Para além de toda a sensibilidade oriental, que cruza espiritualmente com o processo intelectual de interconectar obras de madeira de forma sólida, também a lenda de Miyamoto Musashi sela esta intercambialidade. Reza a lenda que Musashi seria um guerreiro exímio em manusear espadas. Para se tornar mais eficaz, percebeu que tinha de desenvolver as suas capacidades físicas, mas também de aperfeiçoar os conhecimentos sobre a técnica da luta. Então, para aprofundar a ligação às técnicas do duelo, sentiu a necessidade de esculpir as próprias espadas em madeira, com as quais podia treinar. Com a prática adquirida ao construí-las, as suas espadas de madeira seriam confundidas por espadas verdadeiras. A analogia que importa reter é que, para além das utilidades que as espadas de madeira tinham no treino, o facto de Musashi as fazer ele mesmo é uma lembrança de como é importante a dedicação e o empenho, bem como uma prática disciplinada da actividade manual para conseguir atingir a excelência.

Andante, 2023. Maria José Barbosa. Tronco de palmeira e cera de abelha.

“Nenhum artista é artista de maneira continua, todos os dias, vinte e quatro horas sobre vinte e quatro horas. Só consegue criar alguma coisa de essencial, de durável, nalguns raros momentos de inspiração.” 
Stefan Zweig. Momentos Estelares da Humanidade

Tudo começa com a disposição de pôr os músculos ao serviço de formões e goivas, como armas de ataque — pois o trabalho não deixa de ter também uma parte cortante —, que funcionam como extensão para as limitações do corpo humano. O próprio ritmo de desgaste e corte da madeira tem momentos em que se assenta num ponto onde a duração do movimento, a resistência da madeira e a perfeição do instrumento afiado tudo se conjuga numa harmonia sublime, onde parece que todas as formas do mundo estão proporcionalmente organizadas, onde todas as cores se conjugam perfeitamente — onde tudo faz sentido e cada coisa ocupa o lugar certo no mundo. Este reconstruir e caminhar atrás do passado, do campo aberto, das horas vazias e dos dias longos está presente no apelo da escultura em madeira, cujos exemplos exibidos em “A Medida Exata” esperam ser dignos da herança cultural que carregam.

Teoria de Ordem, 2023. Miguel Brehm. Madeira de Buganvília e cera de abelha.

Miguel Meruje

miguelmeruje.com