Ciclo de Exposições na Ante-Sala e Salão da BASE
Exposição Colectiva
Patrícia Magalhães | Pedro Cordeiro Freire | R. T. Snott
Texto de Miguel Meruje

A Base, no seu Ciclo de Exposições na Ante-Sala e Salão, apresenta em Abril de 2022 uma exposição colectiva centrada nos pormenores que originam discrepâncias. Esta valência, pois perfaz um elogio, ilustra a maneira de actuar dos seus intervenientes, imbuídos do espírito escolástico que promove estas conexões entre artistas, bem como no seu conteúdo programático, que assim une as sensibilidades de Patrícia Magalhães, Pedro Cordeiro Freire e R. T. Snott.

A junção vem de algo proporcionado pela forma orgânica como se estabelecem comunidades entre os pares, de colectivo e de pontos em comum. Há, desde logo, a dádiva da partilha e a generosidade da divisão do espaço: o que cada um acrescenta, uma camada quando se trata de algo íntimo como a verdade artística de cada artista presente. Lê-se o acompanhamento recíproco, de cumplicidade, o olhar estranho que acrescenta algo, apenas no estar presente no processo de elaboração – que o diálogo contínuo propícia novas fórmulas quando reunidas em conjunto nestes dois espaços contíguos.

Patrícia Magalhães, Sem título, 2021, acrílico sobre papel de revista 19,8 x 15 cm

Os estágios, as etapas sob as quais assistiremos a ramificações futuras a partir desta raiz comunitária, vemos que respondem a uma chamada à responsabilidade; não de dar a mão para encaminhar, mas a de confiar as mãos em círculo, num espírito de partilha, partindo todos da mesma base. Os quadros que nos cumprimentam com a familiaridade dessa linguagem que só se partilha pela origem comum, até se transformar nesta Hidra tripartida que, para além de renascer livre da negatividade mitológica, mantém a superior inteligência do animal bestial. É uma colectiva feita portanto de diferenças, mas no qual assistimos ao momento em que a centelha se solta, em que se revela o objecto artístico enquanto fenómeno relacional que nos interliga.

O ecletismo convocado pelas obras de Patrícia Magalhães que recebem os visitantes d’A Base representa a súmula das diferentes abordagens que a artista tem explorado no seu percurso. A solidez do alfabeto que institui para construir estas palavras soltas – que são obras plenas de carácter – atesta a amplitude de recursos convidados, bem como a intensa fogueira criativa de onde crepitam estas fagulhas: desenhos, figuras, palavras, organismos do mundo animal, fotografias rasuradas, olhares mascarados e o excesso revertido em formas lineares. Há desenhos a espreitar, da mais orientada e objectiva lisura, até uma erosão das tiras que nos dão restos do processo central na pintura da artista; resto, para lá da erosão, a criação através do excedente, numa idílica perseguição das formas até ao limite. Lembrando, claro, que na arte, ainda não foi encontrado um limite, um fim necessário. Aquele que é o mistério da arte e que suscita interesse por ver e por criar, é uma fonte inesgotável e ininterrupta.

Patrícia Magalhães, Text aligment left on black #2, 2021 acrílico e fita adesiva sobre papel, 53,3 x 39 cm

Esta janela aberta para as guinadas estilísticas, numa rota de curvas e contra-curvas, permite o espectador ver – não só a variedade, mas também o processo de obras recentes; e portanto, terreno em que o solo ainda está convulso e a poeira por assentar. Quantas vão a partir daqui surgir…? Uma, várias, mil? A arte, trans-histórica, modela o mundo, e nestes tempos que apelidam de ‘fim‘ – mas que nunca ocorre –, mantém-se sagrada, perdura, como sempre sobreviveu aos escombros.

A escala cria, não apenas espaços expositivos inusitados como o topo das ombreiras, mas também importa a forma, que existirá sempre, seja abstracta ou realista, definida pela proporção, ritmo, escala, textura, volume entre outros. A rugosidade da textura contrasta com a formalidade da linha recta nas tiras reaproveitadas, corolário da incessante vontade de explorar e viver em toda a extensão aquilo que é ser artista enquanto modelador de formas e criador de sensações. Por um lado, os desenhos de pequena escala suprem a necessidade de imediatez que a actualidade tolda, por outro, quanto maior a dimensão física, mais distintas e profundas são as criações que Patrícia Magalhães revela. Isto conquista-se com a agudez (‘agudeza’) defendida por Baltasar Gracián em 1647, onde o máximo de significado está compactado no mínimo da forma ou estilo.

Pedro Cordeiro Freire, Prometheus on Holidays, 2022, óleo e carvão sobre tela, 110 x 90 cm

No Salão adjacente, em comunicação conjunta e em diálogo com Patrícia Magalhães, ao centro somos recebidos por uma tela de Pedro Cordeiro Freire ladeado por três esculturas de R. T. Snott. Embora pesem os vaticínios cíclicos da morte da pintura desde os seus esboços iniciais, provou-se que a pintura sobrevive mesmo quando na ruína ou na desconstrução, processo onde se expõe e se questiona. Já Séneca dizia em Troianas: ‘post mortem nihil est, ipsaque mors nihil‘ – nada é depois da morte, a própria morte nada é. Mas a verdade é que a pintura mantém o seu distinto lugar na realização artística. Pedro Cordeiro Freire preserva o legado anglófono das figuras solitárias que estão sempre a ser observadas e trucidadas pelo olhar. Os contornos corporais destacam o irregular, o estranho, mas são manifestações em que os buracos não são feridas, mas um local de onde a pintura floresce.

Ao embelezar-se o grotesco, o espectador tem de ter cuidado para não magoar ainda mais a figura em sofrimento, mas quando apreciados na sua individualidade, os seus cortes são passíveis de percepção e análise. “Que grande vaidade a da pintura que nos faz admirar coisas que não admiramos na vida real,” disse Blaise Pascal, pensamento repescado pela vertigem causada pela idealizada versão do homem.

Destaque-se a coragem de se exibir nesta posição de fraqueza: a dificuldade em ser emocionalmente expressivo sobre aquilo que emocionalmente se domina. Mas Pedro Cordeiro Freire é hábil na pintura genuína, aquela em que insere na tinta a óleo uma camada subcutânea, um pressentimento debaixo da pele das figuras retratadas que assim temos por inquietas. Da pálida mortificação da carne e a mortalidade do ser, vislumbram-se as camadas erráticas que, por via do controlo da imagem fixada, se tornam em obra acabada. E claro, a pintura como acontecimento, por cada uma dessas camadas se apagar com o sucessivo quadro que surge à medida que um outro desaparece, pintado por cima num gesto de auto-sabotagem por Pedro Cordeiro Freire. Ao contrário dos românticos obcecados com o fatalismo e a morte, a arte de hoje é virada para a imortalidade, para o registo, para o arquivo. Mas como a pintura está viva, é esse o acontecimento irrepetível: era preciso estar lá durante o processo privado do artista – o que agora restou foi o que importou preservar, é a cabeça da criatura que se regenera quando é cortada.

Precisamente por a obra de arte ser a prova física de um acto mental, mas também o irreal, que não existe no mundo natural, a matéria de uma ideia, primeiro temos a concentração seguida de uma revelação; na contemporaneidade, com a abstracção, teorizamos apenas depois de criar e o imprevisto passa a ser parte da ficção que é a arte. Então, o propósito da arte é inesgotável e infinito, porque a arte não é um problema em busca de solução.

R. T. Snott, Códice no.2, 2021, tricot manual de lã merino, dimensões variáveis

Enquanto contemporâneos do nosso presente, toda a arte é da nossa consciência, nem que sejam peças perdidas mas cuja descrição assimilamos. A mente é capaz de se contemplar a si mesma, e de ter uma consciência. Deste modo, a nossa consciência permite-nos pensar sobre os conteúdos que a preenchem bem como sobre aquilo que geramos reflectindo ou imaginando. Logo, toda a arte imaginável é contemporânea. Contemporânea à natureza do nosso pensamento em consciência, sobre nós e o que nos rodeia. Contudo, com as obras de arte de R. T. Snott, consciencializamo-nos que, apesar da pintura bastar, importa coadjuvá-la por uma outra lente que nos permita olhar para a variedade de técnicas necessárias à actualidade. E a segurança da linha e a qualidade técnica destas contexturas, colocam a pertença de R. T. Snott no âmago do estudo e das preocupações da arte contemporânea.

As três criaturas que surgem do novelo podem ser identificadas por um atributo: partilham o laranja com a tela de Pedro Cordeiro Freire, é a cor que faz a ponte. O laranja é a cor do conforto outonal que, entre o amarelo e o vermelho, é o pigmento emparelhado com o condimento do açafrão. Para além das valências gastronómicas, traz calor e o conforto transitório da mudança de estação e a visibilidade, daí a sua prevalência nos equipamentos de emergência; torna-a distante e capturante do olhar, pelo estímulo e dinamismo que implica. Contudo, o termo ‘laranja’ não é, claro está, de origem latina; as diferentes etimologias para esta cor nas diferentes línguas europeias são fascinantes, mas há uma motivação histórica para esta cor ter a nossa admiração. Foi nas naus lusitanas que mercadores Portugueses trouxeram para a Europa a árvore das laranjas doces por inteiro. Para lá do uso em vestes e capas das

espiritualidades asiáticas, o laranja é um símbolo das trocas comerciais importadas para o velho continente e não existia o nome para a cor até a fruta se tornar popular na Europa. Daí que, de algum modo, também esta cor tenha a sua tradição entre nós, que surgiu ainda longe do impacto nas obras de pintores que a celebraram como Monet, Renoir, van Gogh e Gaguin.

R. T. Snott, Stork, 2022, tricot manual de fio acetinado. Lãs feltradas: acrílico chamuscada, acrílica, merino, de poliéster e de poliamida, 170 x 30 cm

Aproxime-se o olhar para realmente ver a aplicação do fio de Ariadne que, modelado por R. T. Snott cobre os procedimentos populares com a plasticidade das referências que prementemente usa. É com este meio, o tecido, onde o erro pode ser desfeito e a totalidade reordenada com a mesma velocidade que se desconstrói o que se elaborou – a tentativa-e-erro, o fazer e refazer, apto para o aperfeiçoamento contínuo de quem vê um estímulo no gesto repetitivo, aqui desligado da trôpega tradição tricotada e assim elevado a algo cerebral; informado não só sobre os diferentes tipos de pontos manuais, mas sem perder o rastro da sensibilidade pop que se reveste nos fios da tecelagem do artista: a modernidade através da tradição, a elevação do gesto contínuo a arte como extensão da manufactura mas sem ser subserviente. Isto aliado a uma vontade de basear tudo na ordem correcta e na medida apropriada, onde cada ponto diferente – uma tautologia.

Na correspondência de Flaubert existe uma carta, datada de 1852, onde escreveu que “um autor no seu trabalho deve ser como Deus no universo, presente em todo o lado e visível em nenhum,” pensamento muito actual hoje, pois a presença do artista dissolve-se nas imagens que aparentam um distanciamento da experiência humana do artista. Isto porque o carácter experimental da arte desapareceu no decorrer do século XX. A arte é agora concretização, constante e incessante; e o gesto artístico de eleição de R. T. Snott é uma lâmina contra a vergonha do lento genocídio cultural que o desmembramento das raízes traz, criando um ser híbrido e amnésico, que se esqueceu do rio, da montanha e das urzes, da farinha do pão e do tricotar que faz as vestes. Como se vê no rito de tricotar, os costumes recuperados, nada desaparece, as ideias adormecem e ressurgem. Os dons recônditos voltam pelas memórias acopladas, num viver sem a nostalgia em contenção, mas onde estagnar é regredir e logo, a seguir a um ponto que se dá, é necessário enrolar os dedos para o movimento não parar. Impossível cessar: a comunidade tem de continuar. A obra é feita para o olhar, e fazemos parte do sistema de arte não só como intervenientes, mas pelo que ela nos faz pensar.

Patrícia Magalhães – patriciamagalhaes.com

Pedro Cordeiro Freire – pedrocordeirofreire.com

R. T. Snott – rtsnott.com

Miguel Meruje – miguelmeruje.com